Por Eduardo Cunha*
Depois da luta empreendida na semana retrasada, a Câmara dos Deputados conseguiu terminar a votação, em 2 turnos, da proposta de emenda constitucional que trata da chamada reforma tributária.
O texto só foi votado devido à força e determinação do presidente da Câmara, que optou por essa pauta mirando algo que nenhum outro presidente anterior conseguiu desde a promulgação da Constituição de 88.
A versão consolidada, cuja proposta inicial foi bastante criticada por mim no artigo anterior, veio quase como um novo capítulo da parte de impostos da nossa Constituição. Quase uma nova Constituinte de fato.
Embora algo tenha sido melhorado em função das diversas críticas sobre o texto inicial, o resultado ainda ficou longe do ideal. Tem a necessidade compulsória de ser revisto pelo Senado.
Isso sem poder existir qualquer fatiamento, como pregou o dono do Senado, Renan Calheiros, logo desmentido pelo relator designado na Casa Alta. Isso porque o conjunto aprovado está muito interligado. A simples supressão de qualquer coisa provocará a necessária recomposição do conteúdo restante, pois tudo foi fruto de um acordo que será quebrado em caso de alteração.
O relator do Senado, Eduardo Braga, é um parlamentar experiente, com capacidade de conduzir a um bom novo texto – embora o fato de ser do Estado do Amazonas o obriga a defender e ampliar ainda mais os benefícios da Zona Franca de Manaus, uma das principais causas da disparidade do nosso sistema tributário atual.
Inclusive, o vejo entre aqueles com maior conhecimento sobre o tema para produzir um texto aprimorado.
Com relação ao projeto aprovado, o fato de um acordo mediante emenda aglutinativa, que comportou diversas demandas para que todos votassem em agradecimento por serem atendidos e com isso concordando compulsoriamente com as demandas dos outros – mesmo que não fossem favoráveis aos méritos – levou à aprovação de algumas aberrações.
Isso ainda se soma ao fato de ter se votado o 2º turno de forma sequencial e imediata, com quebra de interstício das 5 sessões regimentais necessárias.
Por que é ruim quebrar interstício e votar imediatamente o 2º turno? Porque o constituinte de 88 colocou no texto a obrigação de se votar uma proposta de emenda constitucional em 2 turnos justamente para que se pudesse exercer o juízo de arrependimento em uma 2ª votação, caso se verificasse erros parciais ou integrais em algum texto.
Ao se votar imediatamente os 2 turnos, jamais se alterará o resultado, porque quem votou uma vez não irá mudar o voto 5 minutos depois. Se levasse as 5 sessões, o congressista poderia tomar o conhecimento real e detalhado, até pela crítica da mídia, e com isso teria a oportunidade de refletir e alterar seu voto inicial, inclusive suprimindo ou acrescentado tópicos ao texto.
Na Câmara, esse expediente de quebra de interstício nunca foi adotado nem por mim, nem anteriormente. Mas depois que o Senado começou a aplicá-lo, a Câmara acabou seguindo esse exemplo não muito bom, um que impede que tenhamos realmente um produto final melhorado.
Embora o procedimento seja admitido pela interpretação regimental, já que a própria Constituição não estabeleceu o prazo mínimo entre o 1º e o 2º turno, a prática não é a melhor para o resultado final.
É por isso que muitas novas críticas estão surgindo, principalmente pela criação de um novo imposto estadual, pouco visto na hora de votar pelos deputados – que têm recebido muitas reclamações pelo risco real de aumento da carga tributária em alguns setores, principalmente no agronegócio.
Na hora, ninguém percebeu esse jabuti. Agora, não têm mais a possibilidade do juízo de arrependimento.
É um novo imposto com alguns endereços certos, como a Vale, a Petrobras e o agronegócio.
Esse é um dos defeitos da celeridade de temas tão complexos resolvidos dessa forma pouco usual. Mas o Senado terá a oportunidade de corrigir esse e vários outros pontos.
De qualquer forma, houve uma grande vitória política da Câmara e principalmente do tema, pois alguma reforma tributária acabará definitivamente aprovada e promulgada pelo Congresso, tendo se convencendo a sociedade que o tema será importante para todos.
Resta saber os detalhes finais e as suas consequências. Mas dificilmente haverá recuo sobre esse tema.
O Senado irá modificar com certeza, mas não irá engavetar – cena comum em vários temas ao longo dos anos, onde a disputa pela primazia entre as duas Casas nos leva à simples ausência de deliberação definitiva de propostas relevantes. Vários são os exemplos ao longo dos anos.
O sistema bicameral adotado no Brasil realmente está em crise, nos levando por vezes à reflexão sobre a necessidade da sua manutenção, ou ao menos das suas funções concorrenciais legislativas.
Quanto ao mérito do texto aprovado, ainda temos muitas dúvidas e discordâncias. Podemos pontuar vários pontos, que traremos à reflexão de todos, que certamente serão alvo da discussão no Senado:
- a ausência de um demonstrativo da arrecadação presumida de cada ente federado com o novo sistema (inclusive já exigida pelo relator do Senado) não nos permite ter a exata noção do que realmente vai ocorrer. Ficamos sem isso, todos na base do achismo;
- inclusive, a falta da divulgação da alíquota do novo IVA dificulta o exercício desse demonstrativo, sendo vital que se determine qual a alíquota será necessária nesse novo modelo;
- ficou muito claro a presunção do aumento da carga tributária, principalmente no setor de serviços, onde se deveria ter a determinação de uma alíquota inferior;
- ao se definir uma alíquota de serviços inferior, seria possível abrir mão do excesso das exceções, que trarão a necessidade de uma alíquota padrão maior para compensar as perdas por essas exceções;
- os argumentos de que a maioria dos serviços não é para consumidores finais, assim como a maior parte dos prestadores de serviços poderá estar no Simples, não pode prosperar. Isso porque, quanto aos fornecedores de serviços a terceiros, o imposto cheio estará sendo cobrado de qualquer forma na venda do produto, assim como aqueles que estão no Simples não seriam afetados pela alíquota de serviços menor – pois já teriam essa alíquota reduzida;
- esses argumentos podem também ser usados em sentido exatamente oposto, pois cobrar menos imposto sobre serviços não prejudicará a arrecadação, sem contar que muitos que estão no Simples acabarão optando por sair, já que não terão direito aos créditos das operações anteriores, podendo ficar com os preços não competitivos. O Simples vai acabar atingindo menos gente, tendendo a desaparecer, salvo se for possível aproveitar seus créditos – outra demanda que terá de ser estudada pelo Senado;
- aliás, o texto final também deveria vir com a limitação de uma alíquota máxima a ser aplicada, evitando assim que isso possa ser um instrumento de aumento de carga tributária por uma mera resolução do Senado Federal – o que acho que nem o Senado quer;
- a falta de discussão mais aprofundadado tema, onde na Câmara o principal redator do texto foi o secretário do governo, fez com que alguns abismos fossem criados, fato que não parece que vai ocorrer no Senado;
- o lobby de alguns setores, principalmente do financeiro, teve grande influência no texto, capitaneado por um ex-presidente da Câmara que, após não se reeleger, passou a comandar esse lobby (bem remunerado, por sinal) com efetiva participação direta e da atual família em todo o conteúdo aprovado. Esse mesmo lobby tentou influenciar no texto do projeto do Carf na tentativa de um vergonhoso “Refis futuro”, incluído pelo relator a pedido deles, algo inédito na nossa história. Felizmente, isso foi barrado por um destaque votado no plenário da Câmara, que retirou essa excrecência do texto;
- a criação do Conselho Federativo, que vai se transformar num novo poder no país (talvez o maior deles) que, mesmo com as alterações efetuadas, ainda está longe do aceitável. O ideal seria inclusive que ele não fosse criado, se restringindo esses superpoderes ao Confaz e colocando um quórum de 90% para deliberação, impedindo que nenhuma região se sobreposse à outra;
- a falta de resolução do conflito federativo existente hoje sobre os royalties e participação especial do petróleo, pendente de decisão do STF, deixa claro que não existe solidariedade federativa entre os Estados, pois lutam pela manutenção dos seus direitos, mas negam direitos principalmente do Rio de Janeiro, Sergipe e Espírito Santo (fora São Paulo) de manterem a arrecadação e participar do crescimento da produção de petróleo;
- um dos principais argumentos para a manutenção da Zona Franca de Manauscom todos os seus privilégios é que o crescimento da economia permite o crescimento do Estado (o que é verdadeiro). Mas, dessa mesma forma, negam que o aumento da produção de petróleo possa permitir o crescimento dos Estados produtores ou confrontantes do petróleo. Isso sem contar que, enquanto a produção da Zona Franca não requer qualquer investimento público, a produção de petróleo requer investimentos dos Estados e municípios para mitigação dos efeitos nas regiões afetadas;
- além do que, o crescimento da produção de petróleo não é infinito, já que se torna decrescente depois de algum tempo pelo esgotamento das reservas de cada campo de petróleo explorado;
- a criação desse novo imposto estadual, que irá incidir na produção de produtos primários, terá o dom de impactar não só na carga tributária, mas também no preço dos alimentos e nas exportações. Isso vai ferir o princípio da não incidência de imposto sobre as exportações a ponto de colocar dispositivos contraditórios no texto constitucional, o que certamente será palco de ações judiciais em abundância;
- mesmo que esse novo imposto possa ser usado pelos Estados produtores ou confrontantes do petróleo para tributar a produção petrolífera (compensando a perda causada pela guerra federativa dos royalties), o melhor seria, pelo bem do país, não cobrar essa nova tributação. A solução correta seria pela via da alteração da distribuição dos royaltiese participação especial do petróleo, retornando aos níveis previstos antes da atual guerra federativa, ainda válido atualmente pela suspensão da nova lei por liminar do STF. A simples manutenção do modelo ainda vigente não causaria nenhuma perda aos demais Estados, mas a alteração desse modelo, caso o STF decida validar o novo formato, causará uma enorme perda aos Estados produtores ou confrontantes ao petróleo, bem como aos seus municípios;
- o principal problema no texto da Câmara, na minha opinião, é a remessa de praticamente tudo para definição posterior em lei complementar. Isso é ruim não só pelo desconhecido, mas também pelo quórum menor de aprovação em relação à emenda constitucional, deixando as incertezas no ar. O ideal era que se fosse tramitado de forma simultânea o texto dessa lei ou ao menos que os parâmetros mais detalhados fossem incorporados ao texto constitucional;
- a técnica legislativa do texto precisa ser melhorada, pois há artigos da PEC modificando em sequência o mesmo artigo da Constituição, criando desnecessariamente uma complexidade de interpretações que poderá ser facilmente resolvida no Senado;
- a criação do Fundo de Desenvolvimento Regional sem estabelecer a forma da sua distribuição – também remetida a lei complementar, onde certamente haverá uma distribuição desigual – prejudica os Estados mais populosos, tão ou mais necessitados que alguns menos populosos. Ou será que o critério população não representa mais necessidade de investimentos? Será que Estados aparentemente mais ricos não tem população necessitada até maior do que a população total do Estado menor? É óbvio que temos de distribuir proporcionalmente mais para Estados mais necessitados, mas não podemos desprezar a mesma necessidade de todos os Estados;
- ao não tratar da tributação sobre a renda – que, segundo o divulgado, seria em outro momento –, não tratamos da tributação da distribuição de dividendos e do fim dos juros sobre capital próprio.
No mais, o texto não pode ser considerado como proposta de qualquer governo e sim do país, pois mudar e simplificar os tributos é uma tarefa difícil e afetaria qualquer ideologia. A discussão é diferente, pois a realidade que se impõe é muito mais a preservação da arrecadação dos entes do que o pensamento ideológico sobre a melhor forma de tributar.
A nossa Constituição prevê 3 princípios de tributação: sobre a renda, sobre o patrimônio e sobre o consumo.
Essa proposta trata de tributação do consumo e, em menor parte, do patrimônio, tratando sobre a cobrança de IPTU, além de doação e transmissão de bens e valores. Mas não trata do pilar da tributação sobre a renda, que representa a maior arrecadação da União, com reflexos em Estados e municípios pelo compartilhamento dos fundos de participação.
Ou seja, estima-se que tratamos de cerca de 9% do PIB em arrecadação de tributos, percentual bem abaixo da real carga tributária do país.
O maior problema dessa reforma, em suma, é criar uma expectativa de que estaremos indo para o céu e, pela redação arriscada do texto aprovado, acabar nos levando a um inferno de onde não conseguiremos sair.
*Eduardo Cunha foi presidente da Câmara dos Deputados
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