No Brasil do Século XXI, as Leis e o Direito são repletos de nuances e sutilezas difíceis de serem alcançadas. Não basta saber que existe esta ou aquela lei. Não é suficiente a leitura desta ou daquela notícia acerca do surgimento de novidades na legislação. É preciso entender as normas legais para ter uma noção mais precisa dos reais efeitos delas em nossas vidas.
Para isso, nada melhor do que contar com explicações atualizadas e consistentes na voz de especialistas. Foi por esta razão – e com grande aprovação dos nossos leitores – que o Blog Edmar Lyra passou a publicar textos mais analíticos e aprofundados sobre questões do Direito, sempre conectadas com o noticiário político local, estadual e nacional. Semanalmente, nossos articulistas – os advogados Antonio Ribeiro Junior e Yuri Herculando – tratam de pautas de grande relevância para o nosso público leitor.
Nesta terça-feira (01.10.2019), o advogado Yuri Herculando aborda um tema fundamental e fonte de muita preocupação para os gestores públicos nas esferas Federal, Estadual e Municipal: como se caracteriza e qual a visão dos tribunais brasileiros acerca dos crimes relacionados às licitações. Trata-se de uma análise ao mesmo tempo clara, consistente e atual. Um artigo leve e bem construído. Vale a pena conferir. Boa leitura!
CRIMES ENVOLVENDO LITAÇÕES: UM TEMA SENSÍVEL QUE MERECE TODA ATENÇÃO DOS GESTORES PÚBLICOS.
Dentro das normas gerais da Administração Pública brasileira, em regra, os contratos são firmados através de processo licitatório. O procedimento, previsto na Lei 8666/93, visa dar maior transparência, permitindo o controle externo de tais atos e a lisura dos certames, tendo como base a igualdade entre os participantes e a busca pelo melhor interesse da Administração Pública.
Como dito inicialmente, a regra é que os contratos sejam celebrados através do procedimento licitatório. Entretanto, a própria legislação prevê a possibilidade de uma licitação ser dispensada, dispensável ou inexigível. Eis o “calcanhar de çaAquiles” da maioria dos gestores.
A licitação é dispensada quando a administração já sabe com quem vai contratar ante a impossibilidade de se obter um procedimento competitivo. Por outro lado, será dispensável quando ela é facultada ao ente público, fato que se dá, na maioria das vezes, em razão do custo-benefício do procedimento, ou seja: quando o custo econômico da licitação for superior ao benefício dela extraído. A última hipótese é quando a licitação for inexigível. Neste caso, a norma traz um rol exemplificativo: quando a competição for inviável; quando a abertura do certame for impossível; quando não houver alternativa para o certame; quando não houver meios de convocar todos os interessados; quando o serviço ou produto são muito restritos ou exclusivos.
A mesma lei que trata das normas gerais das licitações e contratos administrativos dispõe acerca de quais condutas são consideradas criminosas. Destaque-se que o fato do legislador tornar crime algumas práticas demonstra a importância que foi conferida ao tema. São 9 (nove) condutas típicas (leia-se: ilegais ou criminosas), sendo que os dois primeiros artigos merecem destaque em razão da frequência que os gestores se veem denunciados pelo Ministério Público.
O art. 89 diz ser crime “Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.”, incidindo na mesma pena – de 3 (três) a 5 (cinco) anos de detenção, o sujeito que “tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.”
No artigo em questão, tanto o gestor que efetuar a contratação de forma ilegal, quanto do particular que se beneficiar da irregularidade podem ser responsabilizados. O que parece ser uma punição por simplesmente descumprir as normas previstas na Lei 8666/93, necessita de um passo a mais por parte do Ministério Público: além de demonstrar a irregularidade, precisa ser comprovado que o agente (Prefeito, Secretários, membro de comissão de licitação ou particular que contrata com a administração) teve intenção ou uma finalidade especial no agir para configurar o ato ilegal. Trata-se do que a jurisprudência denomina dolo específico. Em suma: nesses casos, exige-se que a acusação demonstre que a irregularidade do procedimento teve por finalidade lesar o erário público, bem como causando um prejuízo efetivo, advindo da não observância do procedimento licitatório.
Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ, que decidiu, no julgamento do RHC 74.812/MA ser “Necessário que a denúncia descrevesse a forma pela qual o recorrente teria, de qualquer modo, concorrido para a dispensa indevida de licitação, bem como seu dolo específico em causar prejuízo ao erário público e o efetivo prejuízo à Administração Pública, o que, todavia, não ocorrera.”
Já o art. 90 da mesma Lei 8666/93 é mais claro com relação à finalidade da inobservância da forma legal. Diz o artigo, aqui transcrito de forma literal:
“Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.”
Além de ter frustrado o certame, o agente deverá possuir a intenção de obter para si ou para terceiro, algum tipo de vantagem referente à celebração do contrato. Um exemplo bastante comum desse delito é quando a administração fraciona o valor geral de uma licitação para utilizar modalidade mais simples de contração. Entretanto, ressalte-se que, no exemplo utilizado, não basta o mero fracionamento, o qual seria uma maneira de “frustrar” o caráter competitivo, mas deverá o Ministério Público demonstrar o dolo específico de receber a vantagem indevida decorrente do contrato.
Como dito no início deste artigo, o tema é de fato bastante sensível e merecedor de cuidadosa atenção por parte dos gestores públicos. Não raro, deslizes administrativos podem levar muitos gestores a serem questionados no âmbito da Justiça Criminal – mesmo sem que a conduta delitiva seja efetivamente caracterizada. Pois, muitas vezes, há tão-somente o descumprimento da norma administrativa, inexistindo a presença do chamado dolo específico, conforme explicado ao longo do texto.
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