Mais de 100 mil brasileiros devem morrer de Covid-19, segundo especialistas e profissionais de saúde pública, que advertiram que a pobreza generalizada e a desigualdade social no país alimentarão um aumento explosivo dos casos.
“Não há dúvida de que o epicentro da pandemia está se deslocando para o Brasil. Mas aqui a pandemia encontrará uma população em condição muito, muito precária”, disse Alexandre Kalache, que já foi membro graduado da OMS (Organização Mundial de Saúde) e é presidente do Centro Internacional para Longevidade.
“Se seguirmos nessa curva, chegaremos a 120 mil mortes. Poderemos alcançar o total dos Estados Unidos nas próximas semanas.”
Quase 19 mil brasileiros já morreram da doença, e o país continua registrando um número crescente de mortes por dia —hoje cerca de 900.
Com mais de 290 mil infectados, o maior país da América Latina deve superar a Rússia nos próximos dias como o segundo país em número de casos no mundo.
“O Brasil está tendo certa dificuldade, não há dúvida”, disse o presidente dos EUA, Donald Trump, a repórteres na terça-feira (19), acrescentando que pensa em proibir os voos do Brasil para os EUA.
O surto continua apesar de esforços durante meses dos governadores estaduais para afastar o vírus, fechando suas economias e seus espaços públicos.
“Mesmo com todos os esforços feitos até agora, incluindo a expansão da oferta de leitos hospitalares, isso será insuficiente para o grau de evolução que estamos tendo no momento”, disse Bruno Covas, prefeito de São Paulo, que advertiu que no ritmo atual o serviço de saúde da cidade entrará em colapso dentro de duas semanas.
A situação levou Covas a considerar expandir para “lockdown” (bloqueio completo) o atual fechamento de dois meses da maior cidade da América Latina. Os cidadãos ficariam proibidos de sair de casa.
“Comparado com outros lugares, é difícil entender por que há tanta transmissão da doença, dadas as medidas de distanciamento social. É uma coisa importante a se descobrir”, disse Christopher Murray, diretor do Instituto para Métrica e Avaliação de Saúde, nos EUA.
Um estudo feito neste mês pelo instituto projetou que quase 90 mil brasileiros morrerão até o início de agosto em consequência da Covid-19. Esse número, entretanto, pode aumentar para mais de 193 mil dependendo das condições internas, conforme mostrou o mesmo estudo.
Esses números são considerados conservadores, porque já há uma ampla subnotificação de mortes nas favelas superpovoadas do país, em cidades do interior e em comunidades na floresta.
“Há uma enorme subnotificação. Não temos ideia de quais são os números reais”, disse Kalache, segundo o qual a pobreza e as más condições de vida significam que os jovens também sejam vulneráveis à doença no Brasil. “E falar em isolamento social nas favelas é risível. As pessoas vivem amontoadas.”
O Brasil se classifica entre os países mais desiguais do planeta. A renda mensal média do 1% no topo da escala social, no ano passado, era mais de 33 vezes a renda média dos 50% no nível mais baixo.
Apesar do alarme sobre a magnitude da crise do coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro tem minimizado a importância da doença, incentivando a população a voltar às ruas e ao trabalho.
Bolsonaro disse diversas vezes que 70% da população brasileira, de 211 milhões, acabaria se infectando com o coronavírus e que “não há como fugir disso”.
Essa abordagem o colocou em conflito direto com a maioria dos governadores do país, que estão mantendo medidas de distanciamento social apesar da pressão do governo federal.
“A maioria dos governadores manterá o isolamento social. Acreditamos que essa é a única maneira, acreditamos na ciência e na medicina”, disse João Doria, governador de São Paulo, o maior e mais rico estado brasileiro. “Isso é exatamente o oposto do que recomenda o presidente Jair Bolsonaro. O Brasil enfrenta dois vírus: o coronavírus e o Bolsonarovírus.”
Os comentários foram repetidos por Flávio Dino, governador do estado do Maranhão, no Nordeste, que disse: “Bolsonaro insiste em criar confusão. Ele luta com todo mundo, menos com o coronavírus”. “Ele quer jogar todos os problemas para os governadores. Acha que os doentes não são problema dele e quer culpar os governadores pela recessão e o desemprego, que existiam antes da pandemia.”
A condução da pandemia pelo líder brasileiro já provocou a saída de dois ministros da Saúde. O último, Nelson Teich, foi substituído por um oficial militar, que não tem experiência em atenção à saúde ou no complexo sistema de saúde pública do Brasil.
No início deste mês, Bolsonaro também emitiu um decreto dizendo que os salões de cabeleireiro e academias de ginástica são empresas essenciais e deveriam reabrir, mas o pedido foi ignorado pela maioria dos governadores.
“Foi um gesto fútil do presidente, mas um que visava provocar os que lutamos pelo isolamento social”, disse Arthur Virgílio, prefeito de Manaus, cidade pobre na floresta amazônica que foi especialmente atingida.
A gravidade do surto combinada com a falta de uma resposta política coerente abalou a confiança das empresas e causou um mergulho da moeda nacional. Desde janeiro, o real caiu 32% em relação ao dólar. O PIB, enquanto isso, deverá cair 7% ou mais neste ano, segundo analistas.
Em uma nota de pesquisa intitulada “A casa em chamas do Brasil”, a Gavekal levantou a possibilidade de uma crise constitucional, em que o presidente “buscaria poderes emergenciais para forçar uma abertura econômica”.
“O fato é que levamos um pouco mais de tempo para reagir que nossos vizinhos na América Latina, e tudo ainda está muito descoordenado e desorganizado”, disse Zeina Latif, uma importante economista. “Por isso estamos sofrendo as consequências na economia, mas sem colher benefícios em termos de preparar o país para esta epidemia. Erramos muito no equilíbrio.”
Financial Times
Deixe um comentário