A imprensa e os analistas políticos deram bastante destaque aos três principais pontos aprovados na reforma eleitoral de 2017 – fim das coligações proporcionais, instituição de cláusula de desempenho partidário e criação do fundo especial de financiamento de campanha.
No bojo das medidas infraconstitucionais sancionadas pelo presidente da república, passou meio que despercebida, contudo, uma importante correção no modelo brasileiro de lista aberta.
Trata-se da alteração do art. 109 do Código Eleitoral, que estabelece regras para a distribuição de lugares nos Legislativos não preenchidos diretamente pelos quocientes partidários (QP), ou seja, que dita normas para repartição das chamadas “sobras eleitorais”.
No § 2°original do art. 109 estatuía-se que somente poderiam concorrer às sobras os partidos ou coligações que tivessem obtido quociente eleitoral (QE).
A evidência empírica das eleições tem mostrado que tal restrição, além de injusta, é incoerente, pois impede que siglas menores, mas com certa densidade eleitoral, tenham perspectiva de ascender aos Legislativos, contrariando os próprios alicerces conceituais do sistema proporcional.
Essa deformidade do modelo vigente foi, enfim, corrigida. De fato, na sanção presidencial da reforma, publicada no dia 06 de outubro próximo passado, na edição extra do Diário Oficial da União, o art. 3º da nova lei mantém o caput do art. 109 do Código Eleitoral, mas reescreve o § 2º da seguinte maneira, ipsis verbis:
“§ 2º Poderão concorrer à distribuição dos lugares todos os partidos e coligações que participaram do pleito.”
Dois exemplos, no meio de vários, ilustrarão bem a importância dessa medida.
No pleito de 2010, no Rio Grande do Sul, o PSOL teve 179.578 votos, mas não atingiu o QE para deputado federal, de 198.882 votos, como conseqüência, Luciana Genro, parlamentar do partido, não se reelegeu, ainda que tenha obtido a nona maior votação do estado para as 31 vagas.
Naquela eleição estava em disputa a distribuição de cinco vagas por sobras de votos. Vigorasse à época o novo § 2º, a quinta média mais alta seria a do PSOL, assegurando-lhe a última vaga. Luciana Genro seria reeleita, fazendo jus à sua elevada votação.
No pleito de 2012 para vereadores, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, o QE foi de 11.719 votos. A coligação PSL/PTB (11.488 votos) e dois partidos que concorreram isoladamente, o PSDC (10.364 votos) e o PMN (9.495 votos), não conseguiram assentos na Câmara Municipal apesar de suas votações ficarem próximas de atingir o QE.
Das 27 vagas parlamentares de Jaboatão apenas 18 foram preenchidas diretamente pelo QP naquela eleição, restando nove vagas para distribuição por sobras.
Houvesse permissão legal em 2012 para disputar sobras de voto, tanto a coligação PSL/PTB, quanto os dois partidos, PSDC e PMN, ascenderiam ao Parlamento municipal, pois obteriam a primeira, a quinta e a nona vaga por média, respectivamente.
Dois esclarecimentos se fazem necessários.
(1) Quando um partido (ou coligação), que não atingiu o QE, consegue uma vaga no Parlamento, beneficiado pela nova legislação, esta vaga vem daquelas adicionais obtidas por algum partido (ou coligação) na distribuição de sobras de votos, nunca daquelas conquistadas diretamente pelo QP.
Por exemplo, no caso da eleição gaúcha, a quinta vaga que caberia ao PSOL seria subtraída da coligação PDT/PTN, quinta colocada por média, que conquistara três vagas, duas diretamente pelo QP e uma por sobras. Esta última é que iria para o PSOL.
(2) Com a abertura suscitada pelas novas regras, apenas e tão-somente partidos ou coligações que tiverem votações que chegam próximas do QE é que podem, eventualmente, almejar vaga no Legislativo. Obtendo votações relativamente altas, suas médias serão concorrentes com as últimas maiores médias do bloco de agremiações cujas votações permitiram-lhes angariar vagas diretamente pelo QP e, também, por sobras.
É oportuno ilustrar este caso, ainda com o exemplo do Rio Grande do Sul. Naquela eleição o PV teve 73.732 votos, bastante distante do QE do pleito (198.882 votos). Mesmo com a abertura propiciada agora pela reforma eleitoral, o PV não conseguiria ascender ao Legislativo do estado. Sua média não chegaria nem perto da média do concorrente beneficiado com sobras de voto, mesmo postado em último lugar nas vagas distribuídas.
A explicação é que a sistemática de cálculo das médias pela fórmula D’Hondt – método usado no Brasil – tende a premiar com cadeiras adicionais exatamente aquelas siglas ou alianças que têm as maiores médias, ou seja, aquelas médias que mais se aproximam do QE.
Esta característica do modelo, aliás, reforça uma vantagem do novo regramento, a de que a abertura para disputa de sobras por todos os partidos pode amenizar para alguns deles as conseqüências do fim das coligações proporcionais.
O fim das coligações é fatal para siglas pequenas, de pouca dimensão eleitoral, incluindo aquelas mais ideológicas. Tais siglas, por causa da barreira do QE, tendem a desaparecer ou a permanecer no sistema como meros figurantes, sem nenhuma possibilidade de assunção ao Parlamento.
O espaço agora permitido para que essas siglas possam disputar sobras eleitorais, abre uma pequena brecha para aquelas com densidade de votos gravitando nas proximidades do QE, vale dizer, aquelas de relativo apoiamento eleitoral da sociedade. Assim, estas siglas, mesmo com o fim das alianças proporcionais, teriam expectativas de almejar representação parlamentar.
Com essas duas medidas – fim das coligações proporcionais (2020) e o acesso a distribuição de sobras de voto a todos os partidos (2018) – o sistema eleitoral vigente no Brasil corrige suas duas maiores imperfeições.
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Maurício Costa Romão, é Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
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