
Por Emília Queiroz
Advogada. Mediadora Judicial. Professora. Mestre em Direito.
Em perspectiva histórica global, o reconhecimento do exercício da advocacia por mulheres é recente e tardio. Somente em 1900, na França, a mulher passou a ter autorização formal para exercer a advocacia, o que evidencia o grau de exclusão estrutural que marcou, por séculos, as profissões jurídicas. Antes disso, tornou-se emblemático o caso de Marie Popelin, em 1888, primeira mulher diplomada em Direito pela Universidade de Bruxelas, que teve indeferido seu pedido de prestação do juramento profissional como advogada.
Na ocasião, o Procurador-Geral Van Schoor , em parecer que hoje causa perplexidade histórica, afirmou:
Percorrei o Code Civil. A inferioridade da mulher em relação ao homem é ali afirmada a cada instante… É a esta mulher, em certa medida condenada a uma menoridade perpétua, incapaz de estar em juízo e de dispor de seus bens, excluída das tutelas e conselhos de família, que o legislador teria concedido o poder de aparecer no foro, sob as imunidades do advogado, para representar interesses e defender direitos de outrem? (…) No dia em que a mulher entrar na Ordem, a Ordem dos Advogados terá deixado de existir.
A Corte de Apelação de Bruxelas seguiu esse entendimento, afirmando que a “natureza particular da mulher”, sua “constituição frágil”, sua “missão maternal” e a “direção do lar doméstico” a colocariam em condições incompatíveis com as “lutas e fadigas do foro”. Um reducionismo fisiológico e sexista, herdado da Antiguidade Clássica, que não se restringiu à Europa — foi, e ainda é, um fenômeno universal.
No Brasil, essa realidade não foi diferente. Myrthes Campos, a primeira mulher a se inscrever como advogada, enfrentou uma trajetória marcada por negativas e resistência institucional. Seu pedido de inscrição foi inicialmente rejeitado pelo então Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil, por 16 votos contra 11, sob forte influência de juristas conservadores. Isso após já ter travado longa batalha para validar seu diploma.
Com o apoio de organizações feministas e diante do fato de já exercer, como bacharela, funções típicas da advocacia — inclusive em Tribunais do Júri —, o caso foi submetido à Comissão de Sindicância, que influenciou na nova decisão decisão. Em 1906, mais de sete anos após sua graduação, Myrthes obteve vitória histórica, revertendo o placar para 23 votos a 15, em favor de sua associação ao IOAB.
Ainda como bacharela, Myrthes Campos declarou, com lucidez e coragem que atravessam o tempo:
Envidarei todos os esforços para não rebaixar o nível da justiça, nem comprometer os interesses do meu constituinte, nem oferecer argumento aos adversários da mulher advogada. (…) Tudo nos poderá faltar: talento, eloquência ou erudição, mas jamais o sentimento de justiça.
Ao longo de sua carreira, Myrthes enfrentou represálias ao ousar pautar temas então considerados impronunciáveis, como divórcio, aborto e voto feminino, consolidando-se como símbolo de resistência, técnica e compromisso ético.
Graças ao pioneirismo de mulheres como ela, as mulheres hoje são maioria na advocacia brasileira. Segundo o Primeiro Estudo Demográfico da Advocacia (FGV), realizado em 2023 e divulgado em 2024, 50% da advocacia nacional é composta por mulheres, frente a 49% de homens, com 1% de profissionais que se identificam com outras identidades de gênero.
Em Pernambuco, celebra-se, em 20 de maio, o Dia Estadual da Mulher Advogada, em homenagem ao registro de Eulália Guimarães de Castro, primeira mulher inscrita na OAB-PE, em 1940. É um marco que honra a advocacia feminina pernambucana. Contudo, a história exige memória mais ampla: antes mesmo de Myrthes Campos, a Faculdade de Direito do Recife já havia formado as chamadas quatro Marias, mulheres que romperam barreiras acadêmicas, embora não tenham alcançado a profissionalização como advogadas.
Fazendo justiça histórica a essas precursoras invisibilizadas, Pernambuco hoje pode, simbolicamente, ostentar exatamente quatro mulheres advogadas ocupando espaços de poder e protagonismos institucionais. Um feito expressivo em um Estado marcado por heranças patriarcais profundas, forjadas pela cultura do açúcar e por estruturas sociais historicamente excludentes.
É uma conquista que orgulha. Mas que exige vigilância crítica. Superamos, de fato, o machismo estrutural ou apenas inauguramos uma fase embrionária de ocupação da advocacia feminina em cargos de destaque? A presença de mulheres em posições estratégicas é fundamental, mas não basta se não vier acompanhada de inclusão ampla, plural e concreta, capaz de alcançar outras mulheres advogadas reais que permanecem à margem do protagonismo institucional.
Aqui, é inevitável evocar Paulo Freire, ao alertar que o oprimido só se liberta plenamente quando se reconhece hospedeiro do opressor. A mulher advogada real não pode se deixar seduzir por reconhecimentos vazios, vaidades institucionais ou símbolos que alimentam o ego e preservam intactas as estruturas excludentes. Esse é o verdadeiro “cântico do tritão”: belo na forma, conservador no conteúdo, eficiente em adiar transformações reais.
Por isso, hoje, mais do que celebrar, é preciso afirmar. A mulher advogada que merece ser exaltada é aquela que ressignifica a clássica lição de Sobral Pinto: “a advocacia não é profissão para covardes” — para uma verdade ainda mais exigente: a advocacia feminina não é profissão para mulheres fracas.
Ainda estamos em luta! Que não nos desviemos do essencial. Que não soltemos as mãos das outras mulheres advogadas — aquelas que enfrentam a tripla jornada, a pressão doméstica e profissional, que sustentam suas famílias e constroem dignidade, dia após dia, nos corredores dos fóruns.
É na advocacia real, feita de coragem, técnica e compromisso coletivo, que a mulher advogada forte se liberta. E, ao se libertar, empodera outras — sem reproduzir, ainda que inconscientemente, o machismo estrutural nas instituições que ocupa. Para isso, coragem não é atributo retórico: é condição de existência. Ainda mais para quem, além das lutas comuns da profissão, carrega também as necessárias pautas de gênero.














